“Queria estar morta.”
Uma frase, um meme, um desabafo que todos já proferimos ou, no mínimo, observamos.
Existimos em uma época muito louca — uma época em que as dinâmicas de sociedade, de informação e
de poder evoluíram de tal modo em que somos nossos próprios algozes — ao mesmo tempo senhores e escravos de nós mesmos.
Esse é um texto sobre duas noções que julgo extremamente relevantes no nosso mundo. Uma antiga: Qualidade de Vida. Uma recente: Saúde Mental. Vou tentar conectar fios diferentes pra bordar esse panorama, esse entendimento do nosso Zeitgeist como Sociedade do Cansaço.
Modernidade Líquida
Seja sob uma lente analítica marxista ou segundo o calendário Maia, vivemos em ciclos.
Articulado recentemente pelo queridíssimo Bauman (que fez café da manhã pra minha amiga), estamos há algum tempo vivendo na Modernidade Líquida.
Essa ideia visualiza o processo histórico como pendular, movendo-se entre segurança e liberdade — os desejos humanos que estão sempre se balanceando. Ganha-se liberdade abrindo mão de segurança e ganha-se segurança abrindo mão de liberdade (Leviatã manda beijos.)
O mundo líquido é o que aparece com nitidez após as catástrofes militares do século 20, as guerras mundiais, os regimes fascistas e as ditaduras totalitárias — situações que exemplificam abrir mão de liberdade por segurança.
Em reação, a Era seguinte (na civilização ocidental) foi com o pêndulo indo cada vez mais forte pro lado da liberdade. A liquidez, a que Bauman se refere, demonstra a falta de comprometimento, firmeza e solidez em todos os aspectos da nossa vida: relacionamentos, trabalho, moradia e a porra toda.
Não sentimos firmeza em nada — e isso dá um medo que nos leva a não nos apegar/comprometer a nada.
É o mundo líquido — e estamos nos afogando nele. Guarde essa ideia.
Admirável Mundo Novo
No mesmo século 20, traçando possibilidades de futuros distintos — e criando fábulas de advertência — George Orwell e Aldous Huxley chegaram em mundos bem distintos em suas distopias.
Orwell previu um mundo de estrita censura e controle pelo Estado. Nele, a língua era reformada, guerras eram inventadas e até a história era reescrita para manter o povo obediente e ignorante. Todo acesso a informação era restrito.
Huxley, por outro lado, previu o oposto: uma sociedade de indulgência e distração, na qual as pessoas seriam bombardeadas com entretenimento e informações em abundância. A verdade estava disponível, mas perdida em meio a informações inúteis, erradas e fictícias. (Fake News, é vc?)
Huxley acertou no alvo. Na era da informação — com redes sociais, internet of things, always on, multitelas, algoritmos, segmentações e bolhas — temos acesso a tudo que é importante e relevante, mas estamos constantemente distraídos ou incrédulos.
Não bastasse isso, estamos expondo nossas vidas e expostos às vidas dos outros o tempo todo. Tanto de um lado quanto do outro, através de incontáveis filtros, edições e curadorias. A vida de todos é perfeita e ativa.
A Sociedade das Conquistas está aqui.
A Sociedade do Cansaço
Lembremos:
Ansiedade proveniente de excesso de liberdade. ✓
Superexposição a realidades manufaturadas. ✓
Chegamos no tema principal desse texto, que é a tal da Burnout Society.
Die Müdigkeitsgesellschaft — A Sociedade do Cansaço. Esse é o título do um livro de um filósofo coreano chamado Byung-Chul Han. É de 2010 e tem como objetivo fazer uma análise das dinâmicas, motivações e consequências internas e externas do comportamento humano na civilização ocidental contemporânea.
É comum, quando perguntamos como vão as coisas com alguém, que a resposta seja algo no campo de “Tudo muito corrido.” “Tenho estado muito ocupado.” “Trabalhando que nem louco.” ou outras tantas variações. Raro é responderem que estão tranquilos ou que tem descansado — afinal que tipo de pessoa inútil não está se ocupando o tempo todo?
Positividade é a realidade atual. Estamos no mundo de possibilidades infinitas. A noção de “Yes we can!”, herdeira espiritual do “American Dream” está constantemente reforçando a ideia de que todos podem fazer tudo que quiserem — se se esforçarem.
Esse fenômeno cultural, que cria pretensões irrealistas, permeia há tempos todas as formas e lugares de mídia: de slogans políticos a livros de auto-ajuda, do self-made-man ao coach-de-qualquer-bosta, da influenciadora de moda que posta fotos lindas ~sem maquiagem~ ao crossfiteiro pentelho.
A ideia de que se você se esforçar o bastante consegue o que quiser é antiga. A hiper-exposição a realidades editadas que pretendem ser exemplo disso, é novidade.
Segundo Han, chegamos num momento em que a liberdade toda, somada a toda a positividade do mundo em que vivemos, nos faz dançar a Danse Macabre até a exaustão e além.
No modelo social que prescinde o atual, a Sociedade Disciplinar, o ‘Não’ era um fator limitador. Determinava o que podíamos ou não fazer. A autoridade coerciva do patrão definia a produtividade do funcionário. No modelo atual, a Sociedade das Conquistas, em que houve a eliminação do ‘Não’ e no qual predomina a Positividade de que ‘todos podem tudo’, há a percepção de que nosso único limite é o quanto estamos dispostos a nos esforçar.
Aqui surge o Burnout.
O esforço intenso e ininterrupto. O senso desesperador de autocobrança. Cada vez trabalhando mais horas, disponível através da internet 24h, sem parar por um segundo. Parar é ser menos. Ninguém para.
Essa mentalidade vai muito além da dinâmica de trabalho e a necessidade de ser competitivo no mercado. “Veja o que todos estão conquistando! Eu preciso malhar mais. Eu preciso viajar mais. Eu preciso comprar mais. Eu preciso assistir mais. Eu preciso de mais likes.”
Han nos lembra que a capacidade de concentração é um marco evolucionário que diferencia o ser humano dos outros animais. O ‘multitask’ do qual nos orgulhamos é na verdade um retrocesso. A capivara precisa comer com metade do foco, prestando atenção ou vai virar comida de sucuri. O bonobo precisa descansar com metade do foco, prestando atenção ou vão roubar sua parceira.
A habilidade de conseguir se concentrar e focar profundamente é o que nos dá capacidade de análise crítica e funcional que permitiu aos nossos polegares opositores conquistar e domesticar o mundo. As 20 abas abertas ao mesmo tempo no nosso navegador não mostram que somos hiper capazes, mostra que somos dispersos.
As sequelas e doenças, nessa Sociedade do Cansaço, são mentais. As epidemias de DDAH, Depressão, Borderline e Burnout são as chagas visíveis de uma dinâmica social na qual assumimos culpa total por fracassarmos em atingir ideais irrealistas. Porque achamos que não nos esforçamos o bastante.
E quando nossos corpos e mentes não aguentam mais — esses pedaços de carne inadequados e insuficientes — nós tomamos drogas. Remédio pra atenção, remédio pra dormir, remédio pra acordar, cafeína, ritalina, conhaque.
Tentamos nos encaixar — seja editando nosso output pra parecer que somos overachievers, dopando nosso corpo para lidar com sua exaustão ou criando bolhas sociais que passam pano pras nossas doenças mentais através de piadas e memes.
Há alguns anos, fiz um slide numa apresentação publicitária, analisando a geração dos millennials, em que destacava que as duas principais tendências comportamentais deles, FOBA (Fear of Being Alone) e FOMO (Fear of Missing Out) começavam com a palavra MEDO.
Na solução proposta por Han — de falar mais ‘Não’ pra nós mesmos e pro mundo — nos encontramos em direto confronto com esses medos. Precisamos dizer não para nos desconectar, pouco que seja, da sociedade do cansaço.
Precisamos entender que, de trabalhar à exaustão para entregar mais todos os dias, a dizer toda semana que vamos começar a academia — e sentir culpa se não fizermos isso, são comportamentos autodestrutivos, decorrentes de uma percepção deturpada da realidade.
Por milênios, fomos reféns de dinâmicas de poder que nos levavam aos nossos limites. Agora, finalmente livres da coerção, descobrimos que somos capazes de ser bem mais impiedosos conosco do que qualquer outro seria.
Isso tudo pra quê? Pra postar uma foto de pizza na agência às 23h usando #QueriaEstarMorta ?
Quantos ‘Nãos’ poderiam (ou deveriam) ter sido ditos antes dessa pizza?
Sejem menas.
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